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Mem�ria e Amor

Rudolf Steiner e.Lib Document

Sketch of Rudolf Steiner lecturing at the East-West Conference in Vienna.



Highlight Words

Mem�ria e Amor

Uma palestra de
Rudolf Steiner
Stuttgart, 4 de dezembro de 1922
GA 218

Esta palestra de Rudolf Steiner foi ministrada em Stuttgart, algumas semanas antes de o primeiro Goetheanum - o edifício ao qual ele dedicou seu requintado trabalho como arquiteto, escultor e pintor - ter sido completamente destruído por um incêndio. Nesta palestra ele fala sobre a herança trazida da vida antes do nascimento; da qualidade na alma humana que é a semente para a vida após a morte - a qualidade do amor; e do poder das artes em ligar os dois mundos.

Também conhecida como Arte em sua Natureza Espiritual [em inglês, Art in its Spiritual Nature], é uma palestra dada por Rudolf Steiner em Stuttgart, em 4 de dezembro de 1922, publicada aqui em português com a permissão da Rudolf Steiner Nachlassverwaltung. Esta palestra é a décima quarta das dezesseis em uma sequência intitulada Relações Espirituais no Organismo Humano [em inglês, Spiritual Relationships in the Human Organism], e publicada em alemão como Geistiger Zusammenhaenge in der Gestaltung des Menschlichen Organismus. Ela está contida no volume número 218 da Edição Centenária Completa [em inglês, Complete Centenary Edition] dos trabalhos de Rudolf Steiner.

Copyright © 1983
Esta edição em e.Text é disponibilizada por meio do admirável trabalho de:
The Golden Blade
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MEMÓRIA E AMOR

RUDOLF STEINER

Stuttgart, 4 de dezembro de 1922

É para mim motivo de grande satisfação poder falar-lhes hoje, ao passar por Stuttgart, e gostaria de fazer desta uma oportunidade para discutir vários assuntos relacionados com as duas últimas palestras que aqui me foi permitido proferir. Falei então sobre a relação do homem com o mundo espiritual, na medida em que tal conhecimento pode ser avançado por trazer à tona os processos que acontecem durante o sono sem que tenhamos consciência deles, e pela luz que a ciência espiritual lança sobre as experiências sofridas pelo homem no mundo espiritual, entre a morte e um novo nascimento.

Hoje, gostaria de falar sobre como a vida do homem na Terra é, em certo sentido, uma imagem inversa dessas experiências. A vida humana terrestre é compreendida apenas quando suas manifestações particulares podem ser relacionadas aos seus complementos no mundo espiritual, onde o homem passa a maior parte de sua existência.

Gostaria, primeiramente, de falar sobre algumas das maneiras pelas quais a alma humana se expressa durante a vida terrena, na medida em que podem ser relacionadas a experiências no mundo espiritual. A partir das minhas duas últimas palestras aqui, vocês terão percebido que as experiências da alma humana entre a morte e o renascimento diferem essencialmente daquelas entre o nascimento e a morte. Aqui na Terra as experiências de um homem são todas mediadas por seu corpo, seja o corpo físico ou o corpo etérico. Nada do que ele experimenta na Terra pode se dar sem o apoio da natureza corpórea. Poderíamos facilmente imaginar, por exemplo, que o pensar é um ato puramente espiritual e que, da maneira como sucede na alma humana terrena, não se relaciona a existência em um corpo. Em certo sentido, é assim. Mas espiritualmente independente como o pensamento humano é, ele não poderia seguir seu curso aqui na existência terrena se fosse incapaz de receber o suporte do corpo e de seus processos. Posso me valer de uma comparação que usei muitas vezes aqui em ocasiões semelhantes. Quando um homem está caminhando, o solo em que caminha certamente não é a parte essencial de sua atividade – a parte essencial está dentro de sua pele –, mas sem o apoio do solo ele não poderia obter êxito.

Ocorre o mesmo com o pensamento. Em essência, o pensamento certamente não é um processo cerebral, mas sem o suporte do cérebro ele não poderia ter seu curso terrestre. À luz dessa comparação, obtém-se uma concepção correta da espiritualidade, bem como das limitações físicas do pensamento humano. Em suma, meus queridos amigos, aqui na vida terrena não há nada no homem que não dependa do corpo como sustento. Carregamos nossos órgãos dentro do corpo - pulmão, coração, cérebro e assim por diante. Com saúde normal, não temos percepção consciente de nossos órgãos internos. Nós os percebemos apenas quando doentes, e ainda assim de maneira muito imperfeita. Nunca podemos afirmar que possuímos conhecimento de um órgão por lhe termos olhado diretamente, a menos que estejamos estudando anatomia – mas aí não estamos estudando um órgão vivo. Nunca podemos dizer que temos a mesma visão de um órgão interno que temos de um objeto externo. É característico da vida terrena não conhecermos o interior de nosso corpo por meio da consciência comum. Ainda menos um homem conhece do que ele geralmente considera de maior valor para sua existência corporal – o interior de sua cabeça. Pois quando ele começa a saber alguma coisa a seu respeito, via de regra, o conhecimento se mostra deveras desagradável – dor de cabeça e tudo o que a acompanha.

Na vida espiritual entre a morte e um novo nascimento, prevalece exatamente o oposto. Lá, realmente sabemos o que está dentro de nós. É como se aqui na Terra não víssemos árvores nem nuvens lá fora, mas olhássemos principalmente para dentro de nós, dizendo: aqui está o pulmão, aqui está o coração, aqui está o estômago. No mundo espiritual contemplamos nosso próprio interior. Mas o que vemos é o mundo dos seres espirituais, o mundo que aprendemos a conhecer em nossa literatura antroposófica como o mundo das hierarquias superiores. Esse é o nosso mundo interior. E entre a morte e o renascimento, sentimo-nos realmente ser o mundo inteiro – quando falo do todo é apenas figurativamente, mas é inteiramente verdade – às vezes cada um de nós se sente ser o mundo inteiro. E nos momentos mais importantes de nossa existência espiritual entre a morte e um novo nascimento sentimos nosso interior e experimentamos o mundo dos seres espirituais, conscientes deles. É tão verdade que lá temos consciência de espíritos do mundo superior dentro de nós quanto é verdade que aqui na Terra não temos consciência de nosso interior: do fígado, dos pulmões e assim por diante. O que é mais característico é que, na experiência espiritual, toda nossa experiência física é invertida. Gradualmente, por meio do conhecimento da iniciação, aprendemos como isso deve ser entendido.

Há, entretanto, um processo essencial – ou grupo de processos – relacionado a essa convivência interior com os seres das hierarquias superiores. Se, no mundo espiritual, percebêssemos interiormente apenas o mundo das hierarquias superiores, nunca nos encontraríamos. De fato saberíamos que vários seres estariam vivendo em nós, mas nunca nos tornaríamos plenamente conscientes de nós mesmos. Portanto, em nossa experiência entre a morte e um novo nascimento, há um ritmo. Consiste na alternância entre a contemplação interior em que vivenciamos o mundo dos seres espirituais descritos na literatura antroposófica, e a atenuação dessa consciência. Fazemos o mesmo com o espiritual em nós, quando, na vida física, fechamos os olhos e ouvidos e vamos dormir. Nossa atenção, digamos, se afasta do mundo dos seres espirituais dentro de nós, e começamos a perceber a nós mesmos. Certamente, é como se estivéssemos fora de nós mesmos, mas sabemos que este ser fora de nós é o que somos. Assim, no mundo espiritual, percebemos alternadamente a nós mesmos e o mundo dos seres espirituais.

Esse processo rítmico constantemente repetido pode ser comparado com duas coisas diferentes aqui na existência física terrena. Pode ser comparado com a inspiração e a expiração, e também com o sono e a vigília. Na existência física na Terra, ambos são processos rítmicos – ambos podem ser comparados com o que venho descrevendo. Mas com os processos que ocorrem no mundo espiritual entre a morte e o renascimento, não se trata de saber algo de uma forma puramente abstrata, ou – devo acrescentar – para a satisfação de curiosidade espiritual; trata-se de reconhecer a vida na Terra como uma imagem do supraterrestre. E surge necessariamente a questão: o que acontece na vida terrena que se assemelha a uma faculdade de memória não possuída pelo homem em sua consciência comum, uma faculdade que pode ser possuída por seres das hierarquias, arcanjos? O que há na vida física que é como uma memória de se viver no mundo dos seres espirituais, ou como uma memória de se experimentar a si mesmo lá?

Ora, meus queridos amigos, se entre a morte e um novo nascimento não tivéssemos a experiência de olhar para dentro de nós mesmos e de encontrar o mundo do espírito, aqui na Terra não haveria tal coisa como moral. O que retemos dessa experiência dos seres no mundo espiritual, quando entramos na vida terrena, é uma inclinação para a vida moral. A força dessa inclinação se dá proporcionalmente à clareza com que, entre a morte e o novo nascimento, o homem experimentou a convivência com os espíritos do mundo superior. E qualquer um que, em um sentido espiritualmente correto, examine essas coisas, sabe que os homens imorais, como resultado de sua vida anterior na Terra, tiveram uma experiência muito embotada dessa existência espiritual. Mas, se entre a morte e um novo nascimento, pudéssemos experimentar apenas o que nos torna um com os seres do mundo superior, e nunca pudéssemos experimentar a nós mesmos, então seria impossível alcançarmos, na Terra, a liberdade, consciência da liberdade, consciência da nossa personalidade, que é fundamentalmente idêntica à consciência da liberdade. Assim, quando, na Terra, desenvolvemos moralidade e liberdade, elas são memórias do ritmo que experimentamos no mundo espiritual entre a morte e um novo nascimento. Ao direcionarmos nosso olhar à alma, podemos falar mais precisamente sobre o que nela ecoa: por um lado, tornar-se um com os seres espirituais e, por outro, nossa experiência da consciência espiritual do eu. O que durante a vida terrena permanece em nossa alma como um eco de nos tornarmos um com os seres do mundo espiritual é a capacidade para o amor. Essa capacidade para o amor está mais intimamente relacionada à vida moral do que se pensa.Pois sem a capacidade para o amor, não haveria vida moral aqui na Terra; tudo isso surge da compreensão com que nos deparamos com a alma de outrem, e do esforço para realizar o que fazemos a partir dessa compreensão. Comportarmo-nos abnegadamente com os demais e agirmos moralmente no amor são essencialmente ecos de nossa vida em comunhão com seres espirituais, entre a morte e o renascimento; e isso permanece conosco depois da nossa experiência do que se poderia chamar de solidão – pois é sentida como solitária a experiência do nosso eu no mundo espiritual quando, por assim dizer, expiramos. A inspiração é como uma experiência de seres espirituais; a expiração é como uma experiência do nosso eu. Mas sentir-se solitário – bem, esse sentimento tem seu eco aqui na Terra na nossa capacidade para a lembrança, nossa memória. Como seres humanos, não teríamos memória se ela não fosse um eco do que descrevemos como um sentimento de solidão. Somos indivíduos reais no mundo espiritual porque – não posso dizer que seja porque nos retiramos para dentro de nós mesmos – mas porque somos capazes de nos libertar dos espíritos superiores dentro de nós. Isso nos torna independentes no mundo espiritual. Aqui na Terra somos independentes porque somos capazes de lembrar nossas experiências. Pense no que seria de sua independência se, em seus pensamentos, você tivesse que viver sempre no presente. Seus pensamentos lembrados são o que possibilita que você tenha uma vida interior. Lembrar nos torna personalidades aqui na Terra. E lembrar é o eco do que descrevi como a experiência de solidão no mundo espiritual.

Pois bem, por que descemos ao mundo físico do mundo espiritual? Vocês poderão deduzir, a partir do que eu disse aqui da última vez, que as forças que nos mantêm juntos com os seres espirituais superiores decaem. Aqui na vida física, envelhecemos porque as forças que nos mantêm em conexão com a Terra física diminuem; lá, enfraquece o que nos mantêm ligados aos seres espirituais. Diminuem principalmente as forças que permitem que nos apreendamos em meio aos seres espirituais e que nos possibilitam sermos independentes. No mundo espiritual, por um período considerável antes de descermos à Terra, perdemos a capacidade de conviver com os seres espirituais. Com o auxílio dos seres espirituais, formamos a semente espiritual de nosso corpo físico, que enviamos primeiramente; daí nos apropriamos de nosso corpo etérico e prosseguimos. Ilustrei-lhes isso em minha última palestra. Nossa capacidade de viver com seres espirituais no mundo espiritual desbota e percebemos como, por meio das forças da lua, nos aproximamos cada vez mais da Terra. Sentimo-nos como um eu, mas cada vez menos capazes de compreender as regiões espirituais, ou de nos manter nelas; tal capacidade se torna cada vez mais débil. Temos um sentimento crescente de que o desfalecimento prevalecerá sobre nós, no mundo espiritual. Isso cria uma necessidade de que aquilo que não mais conseguimos carregar conosco – o sentimento do eu – seja sustentado por algo externo, a saber, nosso corpo: surge uma necessidade de sermos sustentados por um corpo. Eu poderia dizer que, gradualmente, temos que desaprender a voar e aprender a andar. Vocês sabem que estou falando figurativamente, mas a imagem está em absoluto acordo com a verdade, com a realidade. É assim que encontramos o caminho para nosso corpo. O sentimento de solidão encontra um refúgio no corpo e se converte na faculdade da lembrança, e temos que nos empenhar para alcançar um novo sentimento de comunhão, na Terra. Isso se mostra muito significativo quando, com o auxílio da ciência espiritual, estudamos o estado do sono.

Descrevi esse estado de sono sob um determinado aspecto, a última vez que estive aqui. Agora quero acrescentar algo sobre os processos então mencionados. Eu sei que essas coisas são facilmente mal compreendidas. Repetidamente, ouve-se dizerem: “Da última vez, ele descreveu a experiência do homem entre dormir e acordar, e agora ele está nos contando algo diferente sobre issoâ€. Meus queridos amigos, se lhes digo o que um oficial vivencia em seu posto de trabalho, isso não contradiz o que mais tarde lhes direi sobre ele, quando no seio de sua família. As duas coisas caminham juntas. Portanto, vocês devem ter claro que, quando conto experiências entre o dormir e o acordar, não se trata de toda a história, assim como é possível um oficial ter uma vida em família, fora de seu posto.

Assim, entre ir dormir e acordar, o homem experiencia de fato uma espécie de repetição ao contrário do que realizou no decorrer do dia. Não é que simplesmente entre ir dormir e acordar – o sono pode ser bastante curto, e então as coisas são condensadas –... não é que simplesmente entre ir dormir e acordar o homemtenha uma visão retrospectiva de suas experiências durante o dia – uma visão inconsciente, pois naturalmente deve ser inconsciente. Não; quando a alma, durante o sono, se torna realmente clarividente, ou quando a alma clarividente relembra na memória as experiências entre ir dormir e acordar, vê-se que o homemrealmente experiencia no sentido reverso o que havia vivenciado desde a última vez que despertou. Se ele dorme a noite toda da forma usual, ele retrocede no que fez durante o dia. O último evento ocorre imediatamente após seu adormecer, e assim por diante. Todo o seu sono funciona de uma forma maravilhosamente reguladora. Só lhes posso falar sobre o que pode ser investigado pela ciência espiritual. Quando vocês adormecem por quinze minutos, o início do sono sabe quando acabará, e nesse quarto de hora vocês experimentam, na ordem inversa, o que trouxeram desde a última vez que acordaram. A tudo é dado a proporção correta – por mais maravilhoso que isso possa parecer. E pode-se dizer que essa experiência retrospectiva reside entre a realidade e a aparência.

Se alguém tem uma imagem na memória de algo experimentado na vida física vinte anos antes, uma pessoa saudável e reflexiva não a considerará uma experiência presente; é da natureza da própria imagem da memória que a relacionemos a uma experiência passada. Quem olha de forma clarividente para o que a alma vivencia durante o sono, em ordem inversa, não conecta isso ao presente; mas ao futuro após a morte. Assim como qualquer pessoa percebe que sua lembrança de algo vivido vinte anos antes se refere àquele tempo passado, também quem vê o estado de sono por meio da clarividência sabe que o que enxerga não tem significado para o presente, mas prenuncia o que deverá ser experimentado após a morte, quando tivermos que percorrer, ao reverso, tudo o que tivermos feito na Terra. É por isso que essa imagem do sono é meio-realidade, meio-aparência: está relacionada ao futuro. Logo, para a consciência comum, é uma experiência inconsciente daquilo por que o homem tem de passar, que chamei em meu livroTeosofia de mundo da alma. E a consciência intuitiva e inspirada, descrita em meu livroO conhecimento dos mundos superiores, reúne, a partir da observação do sono, o que o homem tem que passar durante o primeiro estágio após a morte. Essas coisas não são meras fabricações; são claramente observadas, uma vez que o dom da observação tenha sido adquirido. Portanto, desde ir dormir até despertar, o homem vivencia, sem o seu corpo, o que fez com ele quando acordado.

Chegamos agora a um conceito extraordinariamente sutil. Pense em como, de fora, temos que viver nossas ações novamente com nosso ego e com nosso corpo astral. A capacidade de fazê-lo é adquirida na proporção do grau de amor que desenvolvemos. Esse é o segredo da vida, no que diz respeito ao amor. Se um homem é realmente capaz de desprender-se de si mesmo no amor, amando ao próximo como a si mesmo, aprende o que precisa durante o sono para experienciar, ao contrário, plenamente e sem dor, o que deve ser vivenciado dessa forma. Porque, nesta hora, ele deve estar completamente fora de si mesmo. Se um homem é um ser sem amor, surge uma sensação quando, fora de si, ele tem que experimentar as ações que realizou sem amor. Isso o retém. Pessoas sem amor dormem como se – para usar uma metáfora – tivessem falta de fôlego. Assim, tudo o que somos capazes de cultivar em nós por meio do amor se torna verdadeiramente frutífero durante o sono. E o que é assim desenvolvido entre irmos dormir e acordar atravessa o portão da morte e subsiste no mundo espiritual.  Aquilo que se perde entre a morte e o renascimento, quando vivemos junto aos os seres espirituais dos mundos superiores, é recuperado por nós como uma semente, durante a vida terrena, por meio do amor. Pois o amor revela seu significado quando, com seu ego e corpo astral, o homem, dormindo, está fora de seu corpo físico e corpo etérico. Entre ir dormir e acordar, seu ser essencial se amplia, se ele está cheio de amor, e se prepara bem para o que lhe acontecerá depois da morte. Se ele não tem amor e está mal preparado para o que lhe acontecerá após a morte, seu ser se estreita. A semente para o que acontece após a morte repousa preeminentemente no desdobramento do amor.

Durante nossa vida na Terra, entre o nascimento e a morte, nossas memórias são extraordinariamente fugazes; apenas imagens permanecem. Reflita sobre quão pouco essas imagens retêm dos eventos vivenciados. Basta se lembrar da indescritível tristeza sofrida diante da morte de alguém muito próximo, e imaginar intensamente o estado interior da alma a isso associado; e então observar como isso aparece como uma experiência interior quando, depois de dez anos, você a evoca. Tornou-se uma sombra pálida, quase abstrata. Assim é a nossa capacidade de recordação: pálida e abstrata, em comparação com o pleno vigor da vida imediata. Por que nossa lembrança é tão fraca e sombria? Ela é, de fato, a sombra de nossa experiência do eu entre a morte e um novo nascimento. Compreendida nessa experiência do eu está a faculdade de lembrar, de modo que ela realmente nos confere a nossa existência. Aquilo que nos dá carne e sangue aqui na Terra nos confere, entre a morte e um novo nascimento, a faculdade da memória. Lá a memória é robusta e vigorosa – se é que posso usar tais expressões para o que é espiritual – depois ela incorpora carne e enfraquece. Quando morremos, durante alguns dias – tenho frequentemente descrito isso –, o último resquício de memória ainda fica presente no corpo etérico. Se, ao atravessarmos o portão da morte, voltamos o olhar para nossa vida passada na Terra, a memória se esvai. E dessa memória desabrocha o que a força do amor na Terra nos deu como força para a vida após a morte. Assim, a força da memória é a herança que recebemos de nossa vida pré-terrena, e a força do amor é a semente para o além-morte. Eis a relação entre a vida terrena e o mundo espiritual.

Assim, meus queridos amigos, comparei a experiência do homem em conexão com seres superiores no mundo espiritual, que alterna com sua experiência do eu, com a respiração: inspiração e expiração. Em nosso processo respiratório e nos processos relacionados com a fala e o canto, podemos reconhecer uma imagem da “respiração†no mundo espiritual. Conforme eu já disse, nossa vida no mundo espiritual entre a morte e um novo nascimento alterna entre a contemplação do eu interior e o tornar-se um com os seres das hierarquias superiores; olhar de dentro para fora, tornar-nos um com nós mesmos. Isso ocorre tal como inspirar e expirar. Inspiramo-nos e depois nos expiramos; e isto é, obviamente, uma respiração espiritual. Aqui na Terra, esse processo de respiração se torna memória e amor. E, de fato, a memória e o amor também atuam juntos aqui na vida física terrena como uma espécie de respiração. E se com os olhos da alma vocês forem capazes de ver corretamente esta vida física, serão capazes de observar em uma importante manifestação da respiração – no falar e no cantar – a atuação fisiológica conjunta da memória e do amor.

Estudem a criança até a troca de dentes. Notarão como o poder da lembrança, da memória, gradualmente se desdobra. Inicialmente, é bastante elementar. A criança possui certa memória, mas ela se torna uma força independente apenas no momento de troca da dentição, estando completa em seu desenvolvimento quando a criança está madura para a escola. Só a partir daí que podemos começar a edificar a memória. Antes disso, ao enfatizarmos a memória, tornamos a criança rígida e criamos uma condição de alma esclerótica para sua vida posterior. Quando lidamos com crianças antes da troca de dentes, trata-se de receberem as impressões do presente da maneira correta. É entre a troca da dentição e a puberdade que podemos empreender a edificação da memória.

Hoje a ciência da fisiologia não atingiu o ponto em que pode descrever detalhadamente o processo que acabamos de desenhar. A ciência espiritual é capaz disso e a ciência fisiológica certamente alcançará tal entendimento, pois essas coisas podem ser descobertas a partir da observação atenta da natureza humana. Pode-se dizer que, quando emitimos um som ou uma nota, primeiramente, a cabeça é acionada. Mas da cabeça procede a mesma faculdade que, interiormente, na alma, confere a memória, que sustenta o som e o tom: isso vem de cima. É inconcebível alguém poder falar sem possuir a faculdade da memória. Se sempre nos esquecêssemos o que está contido no som ou no tom, nunca seríamos capazes de falar ou de cantar. É precisamente a memória incorporada que perdura no tom ou som; por outro lado, no que concerne ao amor, mesmo em seu sentido fisiológico – no processo respiratório que dá origem à fala e ao canto – tem-se um testemunho claro no pleno volume interior do tom que chega ao homem na puberdade, quando o amor encontra expressão fisiológica durante o segundo período importante da vida: isso vem de baixo. Aí estão os dois elementos juntos: de cima, o que está na base fisiológica da memória; de baixo, o que está na base fisiológica do amor. Juntos, eles formam o tom na fala e na canção. Aí está sua interação recíproca. De certa forma, é também um processo de respiração que percorre toda a vida. Assim como inspiramos oxigênio e expiramos dióxido de carbono, temos unidas em nós a força da memória e a força do amor, encontrando-se na fala, encontrando-se no tom. Pode-se dizer que falar e cantar, no homem, são um intercâmbio alternado de permeação pela força da memória e pela força do amor.

Eis algo extraordinariamente significativo para revelar o verdadeiro segredo do tom e do som.

Portanto, há uma genuína verdade no que é expresso nas línguas mais antigas ao denominarem Logos a soma das forças e dos pensamentos do mundo. Esse é o outro lado, o lado suprafísico daquilo que tem expressão física na fala. Não apenas inspiramos e expiramos seres superiores entre a morte e o renascimento, mas também falamos, embora essa fala seja ao mesmo tempo um canto. Na alternância entre irmos aos seres espirituais e retornarmos a nós mesmos, falamos um falar espiritual com os seres das hierarquias superiores. Quando estamos no estado de nos tornarmos um com os seres do mundo espiritual, olhamos para eles, embora estejam dentro de nós. Quando nos libertamos deles novamente e voltamos a nós mesmos, então temos o efeito posterior, somos então nós mesmos. Lá eles expressam seu próprio ser em nós, nos dizem o que são – o Logos vive em nós. Na Terra, isso é invertido; na fala e na canção, nosso próprio ser é expresso. Expressamos todo o nosso ser no processo de expiração; ao passo que quando entre a morte e o renascimento liberamos os seres espirituais, recebemos, no Logos, todo o ser do mundo.

Mas, meus queridos amigos, o fato é que quando passamos do mundo espiritual para o físico, passamos pelo grande esquecimento. Quem, com consciência comum, vê aqui, na força fraca e sombria da memória, o eco do que éramos como “eu†no mundo espiritual? Quem ainda reconhece na fala, na parte vinda da memória, a pós-vibração do eu? Quem reconhece na formação plástica do discurso, no canto e na fala, um eco dos seres das hierarquias superiores? Ainda assim, não é verdade que quem aprende a ouvir o discurso sem levar em consideração o significado, quem dá ouvidos ao que os tons expressam por sua própria natureza, tem uma sensação – principalmente se tiver inclinação artística – de que mais é revelado na fala e no canto do que a consciência comum percebe? Por que então transformamos a fala comum que temos aqui na Terra como uma faculdade utilitária – por que a transformamos em canção, despojando-a de sua função utilitária e fazendo-a expressar nosso próprio ser em declamação, em música? Por que a transformamos? O que estamos fazendo em tal caso?

Obtemos a ideia acertada disso se dissermos: antes de descerem à Terra vocês estavam no mundo espiritual e viviam lá, conforme descrito. O grande esquecimento veio. No que sua boca profere, do que sua alma se lembra, em como sua alma ama, vocês não reconhecem o eco do que eram no mundo espiritual. Na arte, entretanto, recuamos alguns passos da vida, por assim dizer, e nos aproximamos do que éramos em nossa vida pré-natal e do que seremos em nossa vida após a morte. E se formos capazes de reconhecer como a memória é um eco do que tínhamos na vida pré-terrena, e como o desdobramento do amor é a semente do que teremos após a morte; se por meio do conhecimento do espírito imaginarmos o passado e o futuro da existência humana, na arte invocamos ao presente – na medida do possível para o homem em sua organização física – invocamos o que nos une ao espírito.

Esta é a glória essencial da arte: ela nos leva, por meios simples, ao mundo espiritual, no presente imediato. Quem é capaz de olhar para a vida interior do homem dirá: de modo geral, o homem se lembra apenas das coisas que vivenciou no curso de sua vida terrena atual. Mas a força pela qual ele se lembra dessas experiências terrenas é a força enfraquecida de sua existência como um eu na vida pré-terrena. E o amor que ele é capaz de desenvolver aqui como um amor universal da humanidade é a força enfraquecida da semente que frutificará após a morte. E assim como no canto e na fala declamatória aquilo que um homem é deve estar unido, pela memória, àquilo que ele pode dar ao mundo por meio do amor, assim também é em toda arte. Um homem pode experimentar uma harmonia de seu eu com o que está fora, mas a menos que seja capaz de mostrar externamente o que está dentro dele – seja no tom, na pintura ou em qualquer outro ramo da arte –, a menos que mostre na superfície o que ele é, o que a vida fez dele, qual é o conteúdo essencial de sua memória, ele não poderá ser um artista. Tampouco é um verdadeiro artista aquele que é acentuadamente inclinado a ser egotista em sua arte. Somente aqueles dispostos a se abrir para o mundo, os que se tornam um com seus semelhantes, os que desdobram o amor, são capazes de unir esse desdobramento do amor intimamente a seu próprio ser. Altruísmo e egotismo se unem em uma única corrente. Confluem naturalmente e mais intimamente nas artes sonoras, mas também nas artes plásticas. E quando, por meio de um certo aprofundamento de nossas forças de conhecimento, nos é revelado como o homem está conectado a um mundo suprassensível, no que diz respeito ao passado e ao futuro, podemos também dizer que o homem tem um antegosto presente desse vínculo, no criar e fruir artístico. Na verdade, a arte nunca adquire todo o seu valor se não estiver, em certa medida, de acordo com a religião. Não que tenha de ser santimonial; mesmo a arte com atmosfera jovial pode alcançar essa harmonia.

Prova abundante disso reside na maneira como a arte se desenvolveu. Originalmente era uma com a vida religiosa. Nas eras primitivas da humanidade, ela era imbuída nos cultos religiosos. As imagens que os homens formavam de seus deuses eram a fonte das artes plásticas. A título de exemplo, recordemos os Mistérios da Samotrácia a que alude Goethe na segunda parte de Fausto, onde fala dos Cabiros. [Vide ciclo de palestrasGoetheanism as an impulse for man's transformation,Dornach, janeiro de 1919.] Em meu estúdio em Dornach tentei fazer um desenho desses Cabiros. E o que resultou disso? Foi algo muito interessante. Simplesmente me propus a desvendar intuitivamente a maneira como os Cabiros teriam aparecido nos Mistérios da Samotrácia. E imagine só: cheguei a três jarros, mas jarros, é verdade, moldados plástica e artisticamente. A princípio fiquei pasmo, embora Goethe tenha realmente falado de jarros. O assunto ficou claro para mim apenas quando descobri que esses jarros ficavam sobre um altar: então, algo semelhante a incenso era colocado neles, as palavras sacrificiais eram cantadas, e pelo poder das palavras de sacrifício – que nos tempos mais antigos da humanidade carregavam uma força de estímulo vibratório bastante diferente de qualquer coisa possível hoje – a fumaça do incenso era formada na imagem desejada da divindade. Assim, no ritual, o cântico imediatamente se expressava plasticamente na fumaça do incenso.

A humanidade realmente adquiriu a arte da vida religiosa. E Schiller tem razão ao dizer: “Somente no alvorecer da beleza se avança para a terra do conhecimentoâ€, que geralmente se encontra citado nos livros como “Somente através da porta da beleza se avança para a terra do conhecimento.†Se um artista comete um lapso, isso é passado para a posteridade. A leitura certa, é claro, é: “Somente no alvorecer da beleza se avança para a terra do conhecimentoâ€. Em outras palavras: todo conhecimento vem por meio da arte. Fundamentalmente, não há conhecimento que não seja intimamente relacionado à arte. É apenas o conhecimento ligado ao exterior, à utilidade, que aparenta não ter ligação com a arte. Mas esse conhecimento só pode se estender ao que, no mundo, um mero lapidador saberia sobre pintura. Assim que na química ou na física se vai além – estou falando figurativamente, mas você sabe o que quero dizer – do que a mera retificação de cores implica, a ciência se torna arte. E quando o artístico é compreendido em sua natureza espiritual da maneira correta, ele gradualmente avança para o religioso. Arte, religião e ciência eram uma coisa só, e ainda é possível termos uma noção de sua origem comum. Isso alcançaremos apenas quando a civilização e o desenvolvimento humano retornarem ao espírito; quando levarmos a sério a relação existente entre o homem aqui, em sua existência física terrena, e o mundo espiritual. Devemos nos apropriar desse conhecimento sob os mais diversos pontos de vista.

Hoje, desejei tratar de um desses pontos de vista, meus queridos amigos, para que, de certo ângulo, vocês formem uma imagem de como o homem está conectado com o mundo espiritual. Espero que possamos continuar ampliando esses estudos em um futuro não muito distante.

Image from Golden Blade, 1983

Conforme publicado em Golden Blade 1983

 

 

 



Last Modified: 02-Nov-2023
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